quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Amarelo de Bacalhau

                  Cozinha de Autor é uma expressão cada vez mais em moda e que designa uma nebulosa vaga que abarca muito experimentalismo sério, muita criatividade e inovação, também muito espectáculo gratuito e feira de vaidades, num rodopio de vulgaridade que não merece que nos detenhamos em tais “autores” e fica por aqui o assunto, que estamos em tempo de Natal.
Quanto às verdadeiras obras de autor, tanto as que nascem nas nossas cozinhas anónimas sempre que criamos ou ensaiamos um novo sabor, um novo prato, como naquelas onde profissionais inventam o futuro da cozinha, são exercícios artísticos admiráveis que, como toda a arte, é singular e pessoal, sendo a sua reprodução por outrem que não o artista a sua própria negação.
Isto coloca uma séria dificuldade para esta 112ª Trilogia com a Ana e o Amândio, sob o tema “Cozinha de Autor”, já que, do mesmo modo que, se eu desenhasse, não faria um desenho que fosse “parecido” com um Picasso, também aqui não irei imitar algo que alguém inventou e cuja plenitude artística só é possível pela sua mão, na sua cozinha e pela sua arte.
Restava-me aparentemente o recurso a algo de que eu próprio fosse autor, quando me ocorreu um prato de que sou herdeiro, criado pela minha avó Amélia e transmitido apenas pela via familiar, algo que começou por ser uma adaptação às idiossincrasias alimentares do meu pai, que não suportava cebola nem alho, e se tornou num prato minimal, estranho e único: O Amarelo de Bacalhau da minha avó Amélia da Cruz Pontes ( 1891-1964).  

Ingredientes:

Batatas cozidas
Bacalhau cozido
Azeite
Pimenta
Louro
Ovos

Preparação:

Fazer um amarelo de bacalhau é um exercício de paciência, totalmente inadequado a uma cozinha apressada. Apesar da sua simplicidade, terá de contar, para além dos ingredientes minimais, com um mínimo de uma hora só para a fase de frigideira. Pode fazer o amarelo numa frigideira de ferro bem queimada, como esta que eu usei e que já era da minha avó, terá cerca de um século,
do tempo da cozinha feita no carvão, e sempre foi a frigideira reservada para o “amarelo”, ou usar uma frigideira com revestimento anti-aderente  usando neste caso uma espátula de madeira com gume.
Misture na frigideira sobras de bacalhau e de batatas, cozidos, tempere apenas com pimenta moída e folhas de louro, 
junte azeite e leve ao lume, cortando continuamente o bacalhau e as batatas com a parte não cortante de uma faca ou a parte cortante de uma espátula, de modo a que vá fritando em conjunto, pedaços cada vez mais pequenos mas evitando sempre o esmagar.
Ao fim de cerca de uma hora, já quase não se diferencia o bacalhau da batata e o conjunto deve ter uma bela cor levemente acastanhada e estar translúcido.
Adicione então ovos batidos e temperados com um pouco de sal, 
deixe fritar completamente enquanto vai partindo os blocos aglutinados pelo ovo até terem um tamanho que permita comer sem partir.
Sirva o amarelo de bacalhau como entrada ou como prato principal, acompanhado de azeitonas e salada de alface temperada com azeite e vinagre e servida com propositado “descuido” de modo a que se dê, no prato, uma certa contaminação que resulta deliciosa.


3 comentários:

anna disse...

Que belíssima ponte entre passado e futuro, como só tu sabes, ou não te chamasses Pontes...
Beijos.

goiaba disse...

Face à introdução achei estranho ter já nos meus registos a seguinte receita de "amarelo de bacalhau" !... :

Amarelo de bacalhau
Utensílios:

Frigideira de ferro larga, tipo paellera, de fundo direito. ( não servem frigideiras de alumínio, nem com revestimento anti-aderente).
Faca de cozinha tipo "corticeira", das que têm o gume afiado, direito e a curva no lado de cima, que não corta.

Ingredientes:

Bacalhau cozido
Batatas cozidas
Azeite
Louro (folhas)
Ovos
Salada de Alface

Preparação:

Reserve 90 minutos, no mínimo, para a confecção deste prato, com dedicação permanente.
Parta em bocados grosseiros as batatas e o bacalhau, para dentro da frigideira. Regue com azeite, junte folhas de louro e ponha ao lume.
Quando começar a fritar, os ingredientes começam a pegar ao fundo da frigideira. Nessa altura, inicia-se a operação fulcral e contínua na execução do prato, cujo êxito depende grandemente do modo como é levada a cabo: Com a parte não cortante da faca, curva, vai-se cortando e simultaneamente despegando os bocados da mistura, em movimentos repetidos. A faca entra na vertical, de alto a baixo, cortando sem esmagar, e quando toca no metal, arrasta um pouco para soltar o que estiver agarrado ao fundo da frigideira. Use lume médio enquanto não tiver práctica, para evitar problemas.
Ao fim de mais ou menos 1 hora de trabalho, a mistura começa a soltar-se e a não pegar, tem um aspecto granular de grão muito fino, em que os fragmentos identificáveis não são já maiores que uma graínha de uva. Retire do lume, retire os pedaços de folha de louro e reserve.
Bata ovos com uma pitada de sal. Imediatamente antes de servir, leve de novo a frigideira ao lume forte, junte os ovos e deixe fritar bem, partindo a fritada constantemente, de mopdo a que os bocados possam ser comidos sem ter de cortar no prato.
As quantidades relativas a usar são as que usaria para um prato de Bacalhau com Batatas. Use 2 ovos e 2 folhas de louro (é o tempero único e dominante) por pessoa e sirva com salada de alface temperada com sal, azete e vinagre.

COINCIDENCIAS ...

Luís Pontes disse...

Cara Goiaba,
Muito obrigado pelo seu reparo e atenção.
Não se trata realmente de coincidência mas sim de uma citação que faz de mim próprio, num post em que falei deste mesmo prato num outro meu blog percursor do Outras Comidas, o Comidas Caseiras.
Foi já em Janeiro de 2008 e encontra-o aqui:
http://comidascaseiras.blogspot.pt/2008/01/amarelo-de-bacalhau.html