sábado, 29 de outubro de 2011

Beringelas Secas Recheadas

                Kuru patlican dolmasi é a maneira como os turcos designam esse prato emblemático da sua riquíssima cozinha, as beringelas secas recheadas, cujas semelhanças com os portuguesíssimos e beirões maranhos deixaram-me desde 2009, a vontade de experimentar, quando Lídia Lopes Kale os apresentou nesse seu belíssimo blog culinário-cultural, “Cozinha Turca”, em que vai mostrando ao mundo de língua portuguesa, as maravilhas culinárias otomanas, em posts que são, ao mesmo tempo, lições de como se cozinha e como se faz um blog.

A oportunidade surgiu quando a minha filha Inês, de férias em Istambul, decidiu trazer-me um desses estranhos “colares” de beringelas secas (kuru patlican) que enfeitam as ruas e os bazares turcos, em profusão, mas que são virtualmente impossíveis de encontrar em Portugal (informação da embaixada da Turquia em Lisboa)*.

 Ingredientes:

12 beringelas secas
1 cebola
½ copo de arroz
200g de carne de vaca, picada
Tomilho seco
Hortelã
Pimenta preta
Sal
3 colheres de sopa de azeite
Salsa picada
3 colheres de sopa de polpa de tomate

Para o “dip”:

6 colheres de sopa de iogurte grego
Tomilho seco
2 dentes de alho
Sal

Preparação:

Demolhe as beringelas secas, em água morna, por 2 a 3 horas.
Misture bem a carne com a cebola picada, o arroz cru, 2 colheres de sopa de azeite, metade do tomate e os temperos
 e recheie as beringelas, tendo em atenção que o arroz, ao cozer, irá aumentar de volume.
Disponha as beringelas recheadas num tacho de modo a que fiquem com a abertura para cima e sem muito espaço entre elas,

 misture a metade restante de polpa de tomate com 1 colher de azeite e meio copo de água e verta no tacho, de modo a não molhar o interior das beringelas.
Leve a lume brando por 30-40 minutos, tapado, ao fim dos quais o arroz estará cozido no vapor e o prato pronto.
Acompanha com um dip de iogurte e alho (Sarmisakli yogurt) que se prepara escorrendo 2 ou 3 iogurtes naturais até terem perdido um terço do seu volume (iogurte grego) e batendo-o com o tomilho, alho esmagado e uma pitada de sal.
Notas: * Pode comprar as beringelas secas e uma infinidade de ingredientes usados na cozinha turca, online, em www.ucuzcular.com.tr 

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Coelho à S. Cristóvão

                    Situada no extremo Sul do concelho de Montemor-o-Novo, a outrora florescente e hoje semi-desertificada aldeia de S. Cristóvão, contribuiu para o rol de pratos que compõem a cozinha alentejana com esse delicioso petisco que é o Coelho à S. Cristóvão.
Vinha-se de longe, nos meios de transporte da época, para desfrutar dessa delícia que era o emblema da Pensão Canejo, onde pontificava, na cozinha e na casa, D. Alexandrina.
A pensão, como quase tudo o resto em S. Cristóvão, fechou portas nos anos 60, há já mais de 40 anos, D. Alexandrina ainda é viva e é dela a receita que hoje aqui trago, minha recolha, nesta 51ª Trilogia com a Ana e o Cupido, com tema “Coelho”.
Como todos os pratos cuja tradição foi até hoje oral, não tendo sido recolhido nem fixado nos seus primórdios, pensa-se que no sec. XIX, o Coelho à S. Cristóvão apresenta hoje variações importantes na sua apresentação, mesmo a nível local, de que vos dou notícia nas notas finais. É esta a da Pensão Canejo, 1ª metade do séc. XX, S. Cristóvão, nos termos de Montemor-o-Novo.

Ingredientes:

Coelho bravo ou manso
Toucinho fresco
Sal grosso
Vinagre de vinho
Alhos
Azeite virgem, extra
Coentros frescos

Preparação:

Faça-se uma massa, no almofariz, com sal grosso, alhos e um pouco de vinagre e esfregue-se com ela um coelho, por dentro e por fora. Deixe-se por 24 horas.
Cortem-se fatias finas de toucinho fresco, alto, e forre-se todo o bicho com este toucinho,
prendendo-se as fatias ao coelho com a ajuda de palitos e ponha-se também toucinho dentro da abertura da barriga. Leve-se então a assar, devagar e em lume de carvão,
até estar tostado e bem tenro.
Retirem-se os palitos e o toucinho, que deverá estar reduzido a um torresmo, desosse-se e desfie-se cuidadosamente a carne do coelho, para uma tigela, e também o toucinho depois de partido em pedacinhos pequenos.
Tempere com azeite virgem finíssimo e vinagre de vinho, abundantes, bem como com coentros frescos picados grosso e dentes de alho picado fino. 
Mexe-se bem e come-se no dia seguinte, acompanhado por batatas novas, cozidas ou assadas, em ambos os casos com a casca.
É, tradicionalmente, acompanhado por vinho branco, encorpado.

Notas:
Há variações, até localmente, na receita de Coelho à S.Cristóvão e, só dentro da aldeia, já provei diversas versões; assim, por vezes o coelho é apenas partido em pedaços antes de temperar e não desossado e desfiado, por vezes o coelho é grelhado apenas com toucinho na barriga mas não exteriormente, por vezes usa-se vinho branco em vez de vinagre na massa de alho e sal inicial, pode ser consumido apenas com pão, como um petisco de tasca e, finalmente, pode levar pimenta e cebola picada no molho.

sábado, 22 de outubro de 2011

Sopa (quente) de Melão Político

                  Se é verdade que em matéria de melancias e ananases consegui desenvolver uma técnica de escolha imbatível, já nos melões (e ainda mais nas meloas), sucede-me amiúde ser enganado por exemplares que, cumprindo todos os requisitos de excelência no que respeita a peso, aroma, lisura da casca, indícios de maturação e demais promessas benfazejas, saem depois umas porcariazinhas desenxabidas e incomestíveis. A analogia inevitável que se estabelece com quem tudo promete e depois nada cumpre (ou só cumpre a parte má), levou-me a denominar estes frutos de qualidade abjecta como Melões Políticos!

Penso que todos já tivemos alguma vez essa sensação de ver um melão político a afastar-se em direcção ao lixo, incólume, apenas com o sorriso rasgado pela fatia única que comprovou o desastre, a rir-se da nós e da nossa impotência pela incompetência da escolha.
É por pensar que nunca um melão, um político ou um melão-político se deve poder rir de nós, que vos deixo esta receita deliciosa de uma forma de lhe dar um destino condigno que, longe de ser uma vitória de Pirro, constitui uma sopa magnífica, para o corpo e para a alma.

Ingredientes:

1 Melão Político
Courgette
Cebola
Alho
Sal e pimenta
Azeite
Alface
Coentros frescos

Preparação:

Tire a casca ao melão, fina, bem como as pevides, parta-o em pedaços e coza-o juntamente com metade do seu peso de courgette também descascada, uma cebola, dois dentes de alho, sal e pimenta e um fio de azeite. Esta é uma sopa em que queremos preservar o sabor do “político” que acabou feito sopa, pelo se usam complementos de sabor quase neutro, cebola e courgette e não há qualquer refogado prévio.
Passe no liquidificador ou com a varinha; se quiser dar uma textura coza por breves minutos umas folhas de alface em juliana fina e sirva salpicada com coentros frescos.
É, definitivamente, o melhor destino a dar aos políticos que nos saem na rifa.  

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Porco Agridoce com Chutney de 3 Anos

                  Diz-se que todos os sabores que sentimos, são combinações de quatro impressões fundamentais: doce, amargo, salgado e ácido.
Agridoce (acre + doce), o tema desta 50ª Trilogia com a Ana e o Cupido, designa uma tonalidade sápida obtida pela reunião de elementos doces e ácidos mas, em culinária prática, chama-se tom agridoce a qualquer combinação de doce com amargo, salgado ou ácido.
Para esta receita, que se queria agridoce à força, escolhi um conjunto de ingredientes e acompanhamentos que permitissem desfrutar de diferentes formas o tema da refeição.
A carne de porco (doce) destes grossos nacos transversais da rabadilha foi demoradamente impregnada com uma pasta de caril muito sui generis, o biryani, que é uma variedade já por si agridoce, depois ao ser grelhada fornece amargo, por fim caramelizada com mel e acompanhada por um puré de batata doce acidulado com balsâmico e por um chutney de ananás e pimento que fiz há mais de 3 anos e que guardei ciosamente até hoje (está quase a acabar), estando agora uma preciosidade indescritível, daquelas que o tempo cozinhou, que emocionam e que se hesita em engolir, de tão bom.  

Ingredientes:

Carne da rabadilha de porco, muito grossa
Pasta Biryani (médium ou hot)
Sal
Mel
Batata doce amarela
Natas frescas
Pimenta preta
Vinagre balsâmico

Preparação (2 pessoas):

Corte transversalmente de uma rabadilha de porco, dois bifes com 2-3cm de espessura.
Barre dos dois lados com pasta de caril Biryani 
e deixe algumas horas a macerar.
Tempere com um pouco de sal (verifique a quantidade de sal do Biryani que utilizar, que por vezes é muita) e leve à chapa lisa com calor moderado durante cerca de 10 minutos,
 depois levante o calor de modo a que a pasta torre e se torne castanho muito escuro.
Retire a carne, sacuda restos da pasta que lhe estejam agarrados, limpe a chapa e volte ao lume médio, desta vez pincelando repetidamente com mel e virando,
de modo a que este mel caramelize e dê à carne um tom bronzeado intenso e uma doçura que contraste com o amargo, ácido e picante do Biryani.
Sirva com um puré feito de batatas doces cozidas em água e sal, esmagadas grosseiramente, temperado com pimenta, aveludado com nata fresca e borrifado já no prato com vinagre balsâmico e um chutney caseiro.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Master Chef, a pornografia culinária !

               É uma reflexão crítica e lúcida, publicada pelo Le Monde na sua edição de 13 de Setembro, sobre um dos mais tristes espectáculos que por esse mundo fora e por cá também se montou sobre o tema cozinha: o “concurso” Master Chef.

Li-a na página de Facebook da Elvira (Elvira’s Bistrôt) e aqui fica na íntegra e no francês original, peço desculpa a quem já esqueceu a língua, mas por certo a alguém servirá, como me serviu a mim.

"Master Chef" ! "Un dîner presque parfait" ! La cuisine envahit chaque jour l'espace public. Outre ces émissions mettant en scène la préparation de repas, des centaines de blogs se consacrant à cette activité fleurissent sur le Web. Cet étrange phénomène contraint à poser deux questions : quel en est le sens ? Notre société n'accorde-t-elle pas trop de place à la cuisine ?
La télévision harponne l'art culinaire avec deux schèmes éprouvés : celui de la télé-réalité et celui du sport. La plupart des programmes combinent ces deux approches, en mettant en compétition sportive des "vrais gens". Ces émissions de cuisine d'un style nouveau prennent le relais de la télé-réalité, dont elles sont un dérivé. Qu'est-ce qui fait plus "vrais gens" que quelques congénères s'affairant aux fourneaux ?

Tous les soirs, sur TF1, une année durant, deux anonymes que l'on ne connaît que par les prénoms se rencontraient autour d'un plat, juste avant la grand-messe du "20 heures". La télévision doit ingurgiter du réel - les fameux "vraies gens", le décor anthropologique de Jean-Pierre Pernaut, un micro-trottoir - le malaxer, le désosser, le mettre en scène sans que rien n'y paraisse pour dégurgiter sur les écrans un produit fini fleurant faussement l'authenticité. Evidemment, il s'agit d'une imposture : la réalité ainsi présentée n'est qu'un produit fabriqué destiné à être jeté afin de pouvoir en consommer un autre le lendemain.

Parodie de l'eucharistie

En instaurant la compétition - sur le patron de la "Star Ac" - la télévision trahit la cuisine dont l'essence réside dans le don, cette grâce, cette gratuité qui soude la convivialité. Dans "Master Chef" - tout comme dans "Un dîner presque parfait" sur M6 - TF1 ne valorise pas la cuisine mais la compétition. En réalité, en transformant la cuisine en avatar du spectacle sportif il la détruit. Ainsi, à l'instar des émissions de télé-réalité, "Master Chef" célèbre le culte de la compétition, de la loi du plus fort, introduit violemment l'activité culinaire dans l'univers de la maxime barbare, "l'homme est un loup pour l'homme".

Longtemps nous avons vécu sous l'identification du religieux et du culturel. La religion fondait l'identité d'une civilisation. Son inscription dans le patrimonial - ce linceul ou ce tombeau qu'est le patrimoine - signe la mort de la religion comme alpha et oméga de la vie collective. C'est alors le patrimoine qui devient l'objet d'un culte, et non plus Dieu ou un prophète - on visite les églises et monastères pour leur beauté, non pour y prier. La folie collective pour la cuisine, si elle prépare à moyen terme sa mort par la patrimonialisation qui l'accompagne (la cuisine française vient d'entrer dans le Patrimoine mondial défini par l'Unesco), substitue à la vieille identification du religieux et du culturel une nouvelle identification : celle du culinaire et du culturel. L'identité d'une civilisation, ce n'est plus sa religion, c'est sa cuisine.

La situation extravagante faite à la cuisine n'est que le symptôme d'une société malade, "une société à la dérive" comme disait le philosophe Cornelius Castoriadis. Cela signifie que la cuisine est vécue, de manière imaginaire, comme le dernier lieu de stabilité, le dernier repère encore debout d'un monde en voie de liquéfaction. Autour d'une table, l'illusion de communauté unie peut se reformer. Autour de recettes, de façons de manger, l'illusion de communication avec toute une civilisation peut renaître - donnant lieu à une parodie involontaire de l'eucharistie.

La télévision démultiplie cette illusion à l'infini, attribuant à une émission culinaire le même office social qu'un match de football ou de rugby : souder, le temps d'un spectacle mercantile, des millions de personnes en leur laissant croire qu'à cette occasion survit quelque chose qui est déjà perdu, la communauté réelle. La cuisine se fait passer pour remède à la crise du sens, dont chacun s'alarme.

La montée en puissance de la cuisine, et sa létale exploitation médiatique, relèvent de la pathologie sociale. Le rôle qui lui échoit - jouer le fantôme du sens - le prouve. Les vrais amateurs de la table et de ses plaisirs voient d'un mauvais oeil cette promotion. Ils savent en effet que la vraie cuisine est sans enjeu, qu'elle n'est ni un spectacle, ni une complétion, ni surtout le dernier réduit du sens et de la culture nationale. C'est parce que la vraie cuisine est vide de ces parasites - les enjeux - qu'accède à la vérité l'adage du vieil Héraclite : "Les dieux sont aussi dans la cuisine."

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A Festa de Filetes

              Um filete é um filete, embora lhe chamem outras coisas de acordo com as necessidades de novidade do marketing da industria alimentar e assim apareça como troço, lombinho, medalhão, etc., isto para só falar dos nomes que se mantiveram em português.
Hoje, que é precisamente o tema para esta 49ª trilogia com a Ana e o Cupido, decidi dar uma volta às roupagens clássicas que vestem um filete, albardado, panado, au meunier, no forno, arranjar-lhe companhia diferente da habitual e, de uns filetes de pescada, fazer uma festa de filetes. 

Ingredientes:

Filetes de pescada
Sal, pimenta e sumo de limão
Amendoins crus
Farinha e ovo batido
Azeite refinado
Azeite virgem
Batata-doce amarela
Natas
Coentros frescos
Courgette pequena
Vinagre balsâmico
Maionese de leite
Polpa de tomate ou ketchup
Miolo de camarão

Preparação:

Escolha filetes altos e tempere-os com sal grosso, pimenta preta e salpique com umas gotas de limão. Reserve.
Triture amendoins crus * (também pode experimentar com amêndoa, caju, pinhões ou avelãs, sempre crus), de modo a ficarem reduzidos a um granulado grosso. Reserve.
Descasque em cru e ponha a cozer em água e sal as batatas-doces cortadas em cubos, passe os filetes por farinha, ovo batido e pelo amendoim triturado e frite-os em azeite refinado 
com calor médio, de modo a que o amendoim do panado possa fritar sem queimar, o que transmitiria um sabor desagradável ao peixe. Escorra em papel e reserve quente
 enquanto esmaga grosseiramente os cubos de batata-doce
 e tempera o puré obtido com sal, pimenta, coentros e natas frescas.

Sirva os filetes quentes, acompanhados pelo puré,
 por uma salada de courgette crua cortada muito fina longitudinalmente e temperada com pimenta, flor de sal, azeite virgem e vinagre balsâmico
 e por um molho composto de maionese de leite (ou de ovo mas feita em casa), um golpe de polpa de tomate ou ketchup para tomar um tom rosado e miolo de camarão cozido e triturado.
Acompanhou esta paleta de sabores uma garrafa gémea do BSE que cozinhou o galo da trilogia de há duas semanas, desta vez bebida até à última gota, como bem merece este grande vinho que sob a batuta de Domingos Soares Franco, vai dispensando sub-títulos como “colheita seleccionada”, “reserva” ou “selecção”; é que quem o conhece, sabe que basta ser “BSE”, B de branco, S de seco e E de muito, muito especial.
 (Parabéns à Casa José Maria da Fonseca pela adesão de mais um vinho à utilização de uma excelente rolha de aglomerado de cortiça, a demonstrar que um grande vinho continua a sê-lo mesmo mostrando preocupações ambientais).

Nota: * Deve usar amendoins ou outro fruto seco mas sempre cru, para que ao fritar este não fique logo demasiado torrado, o que tornaria o panado amargo e desagradável. A noz não é adequada a este fim. 

domingo, 9 de outubro de 2011

O pão nosso de cada dia...

             Há dias, vasculhando sem objectivo nos baús das memórias familiares, que são os acervos de pequenas coisas que uns dos outros vamos guardando ao longo da vida, encontrei um postal ilustrado que eu próprio escrevera e enviara de Copenhaga em 1979 e no qual, pelo meio das vulgaridades que se escreviam em postais ilustrados, eu relatava abismado, que por lá, o equivalente a uma carcaça custava a enormidade de 8$00 e eu, ali com a certeza pacóvia de que qualquer carcaça só poderia custar uns tostões, estarrecia.
Isto fez-me pensar no preço do pão.

Duas conversas virtuais e rápidas com as filhas, cada uma no seu canto da Europa, confirmaram-me o que já sabia: apesar das lágrimas de crocodilo dos industriais do sector da panificação a cada cêntimo de aumento no preço das farinhas ou da energia, o pão tem um preço absurdo em Portugal. 
Hoje é fácil deixar-se 5 Euros na padaria, às vezes mais e mesmo assim ainda não interiorizámos o seu preço, sendo dos alimentos que com maior frequência acaba no lixo, após um estágio de alguns dias à espera de uma tal açorda que não chega a acontecer.
Faço muitas vezes o meu pão, não tanto pensando no preço mas pelo gosto que tenho em fazê-lo e por ter, acidentalmente, sabido o escabroso pormenor da composição* do pão industrial.

Esta noite, pela primeira vez, decidi fazer contas e, surpreendi-me de novo.

Desde que descobri que, afinal, fazer pão não implicava passar pela maldição bíblica do “amassar com o suor do rosto”, que, afinal, o pão se podia fazer, delicioso, sem ser sequer preciso amassar, que as microscópicas leveduras faziam de bom grado esse trabalho por nós, fazer pão passou a ser um gesto quase automático no dia-a-dia, cinco minutos ou nem isso que me permitem o luxo do pequeno-almoço em casa, com pão quente.

Por quanto?

Pela hora do jantar, misturo cerca de 1 quilo de farinha 55** com água morna, sal e fermento natural*** que é um pouco de massa levedada que guardei do pão anterior. Esta mistura é feita rapidamente e sem amassar. Retiro então um pouco da nova massa para ser o fermento do pão de amanhã
 e fica o resto a levedar dentro de uma forma levemente untada com azeite, até ter triplicado de volume, o que acontece lá para a hora de ir deitar. Ponho então a forma com a massa levedada no frigorífico e vou dormir.
Pelas 7h da manhã é só cozer no forno a 220ºC e durante 20-25 minutos. Já está feito um pão delicioso, fofo, com cerca de 1,6 Kg e que deixa por toda a casa e vizinhança o aroma inimitável do pão caseiro acabado de cozer.

Comparadas as leituras do contador da electricidade,
Fiquei a saber que cozer uma fornada de pão consome 6 kWh, ou seja (em período “vazio”), 6 x €0.078 = € 0.468,  47 cêntimos de electricidade, que somado aos €0.33, custo de um quilo de farinha tipo 55 no Lidl, dá 80 cêntimos por 1,6 Kg de pão.
Tendo em atenção que o preço médio de um quilo de pão na padaria é de cerca de €2,20, é fácil perceber quanta pena devemos ter da “miséria” do sr. padeiro.

Notas: * Em qualquer local de venda de pão é obrigatória a existência, para consulta, de fichas técnicas descritivas de cada um dos pães ali vendidos. Recomendo vivamente que se dê uma vista de olhos à composição real daquilo que ingenuamente vamos pensando ser farinha, água, sal e fermento. Pode, por exemplo, fazer um jogo: quem consegue em menos tempo descobrir a farinha no meio da composição de uma carcaça?
** A farinha tipo 55 (ou 550) é a mais vulgar em culinária e faz um pão leve e branco. Pode também usar a farinha tipo 65 (ou 650) para um pão mais firme, tipo alentejano.
 *** A lei portuguesa transcreveu uma directiva comunitária que proíbe o uso de fermentos naturais no fabrico industrial de pão. À boa maneira lusa, esqueceu-se o legislador de salvaguardar todos os pães regionais que usavam este sistema, chamado de "massa velha", ao contrário dos países europeus, que não tocaram nos seus pães tradicionais. Assim, e para grande gozo das multinacionais dos fermentos, em Portugal só se pode comprar pão feito com concentrados industriais de leveduras, o chamado fermento holandês. 

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Gaspacho de Amêndoas (Ajo Blanco)

                   Tal como acontece com a noz e a avelã, o que aproveitamos do fruto da amendoeira é, exactamente***, o caroço! E que aproveitamento: da cosmética à licorística, passando é claro pela doçaria onde é ingrediente essencial a uma infinidade de delícias e à culinária em geral, o difícil seria escolher dentre o tema “Amêndoas” desta 48ª Trilogia com a Ana e o Cupido, a eleita para hoje aqui figurar, certo que rejeitei à partida as utilizações doces mais banais e concentrei a minha atenção nas utilizações culinárias menos evidentes.
O tempo quente que continua por este Outubro, levou-me então à cozinha andaluza, rainha das sopas geladas para um clima escaldante, os gazpachos, o salmorejo e a mazamorra (Córdoba),  a pipirrana, a porra antequarana (Antequera) e, claro, essa maravilha malaguenha, chamada Ajo Blanco e por vezes também gazpacho blanco, a que eu dei o nome de Gaspacho de Amêndoas.

Ingredientes (2 pessoas):

100g de amêndoas
100g de miolo de pão firme
1 alho pequeno
1 dl de azeite
1 colher de sobremesa de vinagre branco
0,5 l de água gelada (aprox.)
Gelo
Sal
Uvas ou melão ou maçã ou figos ou passas de uva

Preparação:

Pele as amêndoas e ponha-as de molho em água durante cerca de 6 horas.
Pese o miolo de pão e ponha-o também de molho em água.
Retire o veio central de um dente de alho pequeno* e passe-o juntamente com as amêndoas demolhadas, o sal, o vinagre, 
e o miolo de pão encharcado, no copo liquidificador**.
Quando a massa estiver totalmente lisa, comece então a juntar o azeite em fio, como para fazer uma maionese. 
Aqui pretende-se realmente emulsionar o azeite e verificará que à medida que adiciona mais azeite a mistura vai-se tornando mais espessa, sinal que a emulsão se está a formar.
Comece então a juntar a água bem gelada, 
sempre com o liquidificador ligado até estar aproximadamente com a consistência de iogurte líquido.
Guarde por uma ou duas horas no frigorífico ou, se for servir de imediato, adicione algumas pedras de gelo e triture-as juntamente com o ajo blanco (atenção: faça esta trituração do gelo na rotação indicada para o efeito, sob pena de liquidar a lâmina do seu liquidificador).
Sirva com uvas descascadas e sem grainhas ou outra das frutas indicadas, dentro do próprio ajo blanco ou à parte.

Notas* Há quem use um alho e até dois por pessoa, inteiros, o que faz do ajo blanco uma sopa fortemente dominada pelo seu sabor forte e tirânico. Optei por usar um dente pequeno para 2 pessoas, e mesmo assim sem o veio central de sabor mais forte, pois queria deixar livre a subtileza da amêndoa e do azeite que, na minha opinião, são a essência desta maravilhosa sopa gelada.
** Tradicionalmente, o ajo blanco é laboriosamente preparado em almofarizes grandes de madeira ou pedra, os morteros, onde os ingredientes são longamente trabalhados. Hoje, é prática corrente a utilização dos liquidificadores ou mesmo da varinha, para a sua preparação.
*** Durante alguns meses adoptei nos meus posts aqui no Outras Comidas, de uma forma que hoje reconheço como submissa, acomodada e pouco crítica, a ortografia infame que nos querem impor através de um acordo ortográfico que agride violentamente os donos da nossa língua: nós.
Foi um período doloroso em que tentei convencer-me da bondade do acordo, mas que chega agora ao fim, convencido, isso sim, de que se trata de um enorme disparate que urge combater com as armas que a cidadania nos concede contra as imposições tirânicas:  as petições, os movimentos de cidadãos e, claro, a desobediência.
Por aqui, vigora a partir de hoje um NÃO definitivo a este acordo ortográfico!