quinta-feira, 30 de junho de 2016

O ronqueio



             É uma palavra estranha e nunca ouvida pela esmagadora maioria de nós. Designa a técnica rigorosa, quase uma arte, utilizada para desmanchar os grandes tunídeos como o bonito, o rabilho ou o albacora.
Habituados ao consumo em conserva cozida ou, mais raramente, a algumas salmouras e ao lombo fresco que chega aos mercados citadinos, só assistindo a essa operação complexa que se chama ronqueio nos podemos aperceber da complexidade muscular destes animais que atingem facilmente algumas centenas de quilos e que fornecem peças tão distintas no seu uso como qualquer grande mamífero fornece diferentes qualidades de carne.



Infelizmente, está hoje restringida a uma pequena empresa de VilaReal de Santo António, as ConservasDâmaso, esta preparação  artesanal dos atuns para conservação tradicional, de onde saem preciosidades insuspeitadas que raramente ultrapassam as fronteiras do Algarve e, quase sempre, ficam até na restauração e particulares de Vila Real de Santo António.
Tive a sorte de poder assistir a um ronqueio, favor raro que me foi concedido pelo próprio Dâmaso do Nascimento (1950-2016), fundador daquela empresa, recentemente falecido. Desde então, sempre que passo por Vila Real de Santo António, um telefonema prévio* garante-me o encontro com peças magníficas de nomes estranhos como tarantelo, carregado e descarregado, mormos e contramormos, faceira e murrilho! Isto quanto a peças em fresco; depois há todas as preparações que vão do salame de atum à tradicional muxama, da estupeta às ovas prensadas.
Do ronqueio dos atuns tenho experimentado sabores e texturas absolutamente preciosas e raras, como é o caso destes mormos
e destes contramormos,
saídos das profundezas das grandes cabeças e que, como qualquer parte do atum fresco, requer preparação rápida e intensa.


Notas: * Tel. 218513840

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Cozido de Verão

               Fosse devido à real dificuldade de manter em boas condições sanitárias os enchidos de sangue no tempo quente, fosse porque nesta altura do ano passam a apetecer comidas mais leves, o certo é que a sabedoria popular acabou por estabelecer um período de defeso para os cozidos, que coincide com o tradicional defeso de consumo do mexilhão durante os meses que não têm "r" no nome, havendo até um restaurante na região de Grândola, famoso pelo seu cozido, que fazia o último da época no feriado do 1º de Maio e o primeiro cozido da época seguinte no feriado do 5 de Outubro.
Claro que hoje esses problemas de conservação já não se põem, nem as indústrias de enchidos podiam passar cinco meses por ano fechadas e os amadores de cozido vão podendo encontrá-lo durante o ano inteiro, mas eu vou seguindo o velho hábito de suspender os grandes cozidos cheios de enchidos de sangue e carnes gordas durante os meses quentes e retomá-los quando chegam os primeiros dias frescos do Outono.
No intervalo, faço o Cozido de Verão!
Oriundo do cozido alentejano, de que herdou a inclusão do grão e do feijão-verde e da preciosa segurelha (mas não a “desordem” e o pão), neste cozido de uma só panela, retiraram-se os enchidos feitos de sangue e as carnes mais pesadas e difíceis de digerir, bem como o toucinho e o arroz de sustância. O resultado é um cozido bem leve e que pode ser comido sem problemas ao jantar ou até antes de um mergulho no mar.

Ingredientes:

Entrecosto de porco, salgado (ou outra carne com osso)
Peito ou aba de vaca (facultativo)
Chouriço de carne
Farinheira
Couve
Feijão-verde
Batata
Cenoura
Nabo
Grão-de-bico (ou Pedrosilanos)
Segurelha fresca (na sua falta, hortelã)
Sal

Preparação:

Salgue as carnes durante 48 horas e demolhe-as depois por duas horas antes de iniciar a confecção.

Este cozido faz-se todo no mesmo caldo, introduzindo os ingredientes de acordo com os seus tempos de cozedura. Comece por cozer durante quinze minutos a aba de vaca, se estiver a usar, depois por cerca de quarenta e cinco minutos as carnes de porco e o chouriço de carne, introduza então as cenouras e a segurelha por dez minutos, depois as batatas e os nabos por outros dez minutos e então as couves (usei repolho-coração), a farinheira e o grão-de-bico previamente cozido (se conseguir, use os pequenos Pedrosilanos, de sabor e textura únicos).
Por último, coza muito brevemente o feijão-verde inteiro e sirva a seu gosto*.

Nota: * Se servir com muito caldo e sobre umas fatias de pão duro, com os diversos elementos do cozido bastante desorganizados no prato, terá aquilo que é, basicamente, o cozido que se come de Verão, no Alentejo. Se for, como eu, dos que gostam dos cozidos ordenados de modo a poder comê-lo pela sua “ordem”, sirva como um cozido normal, sem grandes caldos nem pão.

  

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Patifas (Empadinhas de galinha e farinheira)

                Temos por vezes a veleidade de pensar que criamos algo novo nas nossas cozinhas, mas, na maior parte das vezes apenas recriamos o que alguém já fez, tendo esse alguém usado também aquilo que foi a sua história e a sua aprendizagem naquilo que recriou. É isto a tradição.
Confesso que gostava de vos dizer que estas empadinhas, uma perdição, tão perdição que a minha filha Joana as baptizou de “Patifas”, tinham sido uma invenção minha, mas não seria verdade. Elas são o resultado da fusão de duas empadas que tantas vezes disputam a minha indecisa preferência enquanto espero que cheguem à mesa umas bifanas em Vendas Novas. 
Reúnem o melhor da empadinha de galinha de Montemor-o-Novo, de que já vos falei aqui, com umas outras, oriundas do marketing “bifaneiro” de Vendas Novas: a empadinha de farinheira.
O resultado, a Patifa, é algo de portentoso, que, até que alguém com estabelecimento aberto se lembre de fazer para vender, vai apenas poder experimentar na sua cozinha, como eu faço na minha.
Apesar de não ajudarem nada à linha para a praia, valem bem a pena!

Ingredientes:

2 pernas de galinha grande (ou frango do campo)
2 farinheiras
Miolo de pão duro
2 dentes de alho
Pimentão em pó, fumado
Salsa fresca
Hortelã fresca
Sal e pimenta
Massa tenra
Banha para untar formas
Ovo para pincelar

Preparação:

Coza em água com sal as pernas e as farinheiras.

Retire toda a gordura à superfície do caldo e use-a juntamente com caldo e farinha sem fermento para fazer uma massa tenra.

Desfaça miolo de pão duro para dentro de uma tigela, regue com caldo bem quente e faça uma açorda temperada com sal, pimenta, salsa fresca e alhos esmagados.
Junte o interior das farinheiras cozidas, pimentão fumado
e por fim a carne desfiada em pedaços grandes.
Unte com banha as formas, estenda e corte a massa tenra como foi dito aqui, forre as formas, recheie e termine com um pedaço de hortelã
antes de fechar com a tampa e fazer a tradicional “costura” na massa.

Pincele com ovo
e leve a forno quente (180ºC) durante cerca de 20 minutos ou até estarem douradas.

Quentes, mornas ou frias, com estas Patifas o difícil é parar!

sábado, 4 de junho de 2016

Sopa de Feijão-Verde e Segurelha ("barquinhos")

      Quando eu era criança chamava-lhe “sopa de barquinhos”, alusão directa à forma ovalada das finas lâminas de feijão-verde,
cada uma um navio de imaginárias frotas que iam decorando a borda dos pratos dos mais novos, eu e as minhas irmãs, a minha mãe a ralhar que a sopa era para comer e não para batalhas navais.

Mais de meio século depois, este é um sabor que continua a povoar as minhas refeições de tempo quente, quando aparece a indispensável segurelha
e o feijão-verde deixa de ser marroquino e de estufa. Como todos os pratos verdadeiramente tradicionais, não obedece a uma receita mas sim a uma ideia que lhe dá forma, a maneira de cortar o feijão, um puré de legumes com uma latitude de variação enorme, a segurelha que, quando faltava, era substituída por hortelã. É assim a cozinha tradicional na sua expressão mais verdadeira, a que vai acontecendo, geralmente numa linha familiar de imitação/inovação sem ligar às “fixações”, com que alguém num dia qualquer decidiu que era aquela a receita que ia ficar como cânone.

Ingredientes:

Feijão-verde
Batata
Cenoura
Alhos
Azeite
Sal e pimenta
Segurelha fresca

Preparação:

Leve a ferver em água e sal todos os ingredientes excepto o feijão e a segurelha. Reduza a puré.

Elimine as pontas dos feijões-verdes, agrupe-os em molhos de quatro ou cinco feijões e corte-os transversalmente em lâminas de 2-3mm de espessura (os barquinhos).


Junte ao puré o feijão laminado
e uns raminhos de segurelha fresca,
deixe cozer até o feijão estar tenro, rectifique temperos e sirva.